Sobre as eleições de 2018

Em 2006, na disputa para o Senado, Jandira Feghali estava à frente das pesquisas no Rio de Janeiro. No dia da eleição, contudo, a vaga ficou com Francisco Dornelles. A explicação viria depois: uma grande mobilização contra a candidata, articulada inclusive a partir dos púlpitos das igrejas, dizia aos cariocas que Jandira era pró-aborto e que, portanto, precisava ser barrada. Ninguém mais lembra disso, mas, para mim, foi a primeira indicação da força que tomava um certo tipo de conservadorismo no Brasil. Mas mesmo esse caso já é recente demais: olhando o gráfico sobre projetos de lei sobre aborto no Brasil, fica claro que esse movimente já vinha desde os 1990.

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Fonte: Câmara dos Deputados, http://www.camara.leg.br

Daí em diante, os exemplos só se acumulam: em 2010, o apoio de Dilma Roussef ao direito ao aborto lhe custou votos no primeiro turno; no ano seguinte, a presidenta retirou de circulação materiais escolares contra a homofobia por pressão da bancada evangélica; em 2012, o então Ministro da Saúde, em resposta a pressões da mesma bancada, retirou do ar a campanha de prevenção da AIDS voltada a homens que fazem sexo com homens no carnaval daquele ano; em 2013, foi a campanha sobre prostituição e HIV/AIDS que sofreu o mesmo destino. Também em 2013, Marco Feliciano foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. O Escola Sem Partido existe desde 2004, mas ganhou destaque nacional no segundo governo Dilma. Nessa mesma onda, em 2015, houve o início da mobilização para a retirada do termo “gênero” dos planos de educação.

Quem vem prestando atenção em tudo isso sabe que o que Bolsonaro representa vem de muito longe no Brasil. O que mudou nos últimos anos é que a direita abandonou o centro e se deslocou a esse extremo. Não é difícil entender o motivo: o discurso da direita supostamente liberal não cola no Brasil. O brasileiro não quer Estado mínimo. O brasileiro quer o SUS, a educação pública, a Petrobras em mãos brasileiras e uma vaga de concurso público, de preferência. A direita supostamente liberal resolveu então seguir o exemplo dos Republicanos e abraçar a “culture war” versão tupiniquim. O MBL é um ótimo exemplo: começaram falando sobre reduzir o Estado, logo logo passaram a fiscais de exposição de arte. Ou, indo um pouco mais longe, temos o exemplo do Serra, o sujeito que se lançou como ministro da saúde com a quebra de patentes de medicamentos antirretrovirais e com a Norma Técnica que criou a maioria de serviços de aborto no país e, em 2010, colocou sua mulher para fazer campanha contra a Dilma falando sobre os horrores do aborto. Mesmo o discurso anticorrupção faz parte dessa girada para o campo da moral e dos costumes. Afinal, ninguém quer tratar a corrupção como um algo institucional, endêmico, sistemático. O que a direita supostamente liberal apresenta é uma visão de pureza moral: eles são os corruptos, nós não. (O que é risível em se tratando do PSDB, mas seria absurdo vindo de qualquer um. O problema da corrupção no Brasil jamais será resolvido votando-se no partido x ao invés do partido y, e quem defende o contrário ou é ingênuo, ou está mentindo.)

A lógica, como a dos Republicanos nos Estados Unidos, fica clara: convencemos a população com um discurso conservador, contra o movimento LGBT, contra as feministas, contra a esquerda que “sente pena de bandido” e ameaça a “família tradicional brasileira”, para então conseguirmos todas as reformas do plano econômico que o povo brasileiro não quer. Usaram esse discurso anti-esquerda para conseguir o impeachment e passar a PEC do teto e a reforma trabalhista na base de manobras e de compra de parlamentares, contra a vontade expressa dos eleitores. O Paulo Guedes está cumprindo esse papel na equipe do Bolsonaro, o Dória já deu também seu apoio, e não duvido que nos próximos dias mais pessoas do PSDB e do Novo façam o mesmo. O problema é que a direita supostamente liberal brasileira achou que conseguiria canalizar esse apoio para si e não entendeu que o crescimento desse conservadorismo não os beneficiaria. O resultado está aí: o PSDB e o MDB encolheram, o PSL saltou de um parlamentar para a segunda maior bancada no Congresso. E, claro, quem paga o preço dessa guinada são os LGBTs, as mulheres, a população mais pobre.

Já vi gente dizendo que o Bolsonaro é culpa do PT, porque é sempre muito mais fácil culpar as pessoas de quem você discorda do que reconhecer que seus aliados erraram. A verdade é que o Bolsonaro é uma reação aos acertos do PT, e não aos seus erros – à defesa das minorias, o respeito pelos direitos humanos, os programas de combate à pobreza. Se há rejeição ao PT, a direita supostamente liberal deveria ter organizado uma alternativa democrática para aqueles desiludidos com a esquerda. Ao invés disso, reforçaram a radicalização da direita, e agora perderam toda a relevância no cenário nacional. É importante dizer isso porque, se ainda tivermos democracia nos próximos anos, precisaremos de uma direita democrática, e não há chance alguma de termos isso enquanto insistirem que a culpa de tudo é do PT.

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Não à PEC 29/2015

Este post é para pedir que vocês acessem a consulta pública do Senado e votem não à PEC 29/2015, que “Altera a Constituição Federal para acrescentar no art. 5º, a explicitação inequívoca ‘da inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção’”. Escrevo sobretudo às pessoas que se opõem à legalização do aborto no Brasil – que, como se sabe, são a maioria – porque acredito que mesmo você, que é contra o aborto, tem motivos para se opor a essa PEC. Aqui estão os principais.

1) Essa PEC proibiria mesmo os abortos necessários para salvar a vida da mulher

Esta é Savita Halappanavar.

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Ela era dentista e estava grávida de seu primeiro filho. Era uma gravidez desejada, mas, um dia, quando estava grávida de 17 semanas, Savita começou a sentir fortes dores e decidiu ir a um hospital. No hospital, sua bolsa amniótica rompeu, e Savita foi informada de que um aborto espontâneo era inevitável. Assim, Savita pediu que fosse o aborto fosse induzido, mas foi informada de que isso era ilegal na Irlanda, onde vivia, enquanto o feto tivesse batimentos cardíacos. Uma funcionária do hospital lhe disse que o aborto não era permitido porque “a Irlanda é um país católico”. Savita desenvolveu septicemia e morreu após dar à luz um natimorto.

Beatriz teve mais sorte. Cidadã de El Salvador, um país que proíbe o aborto em todas as circunstâncias – como propõe a PEC 29/2015 –, Beatriz tem uma doença crônica chamada lúpus. Médicos determinaram que, devido à sua saúde precária, a gravidez colocava em risco a vida de Beatriz. Além disso, um ultrassom demonstrou que o feto não tinha cérebro, e portanto não seria capaz de sobreviver ao parto. A despeito do claro risco à vida de Beatriz, e da impossibilidade da sobrevivência do feto, a Suprema Corte negou seu pedido para realizar um aborto. Ao invés disso, forçaram-na a continuar a gravidez até a 27ª semana, quando ela foi submetida a uma cesárea. Durante meses, sua vida correu risco para que ela desse à luz uma bebê que viveu apenas cinco horas. Até hoje, ela lida com problemas de saúde decorrentes da gestação.

Em países com leis restritivas sobre aborto, casos como o de Savita e Beatriz são a regra, não a exceção. Se você se opõe ao direito ao aborto, pode pensar que casos como esse são trágicos, mas que salvar a vida dessas mulheres não é justificativa para por fim à vida do feto. A isso, tenho duas respostas. Em primeiro lugar, até em torno da 24ª semana de gravidez, o feto não é capaz de sobreviver fora do corpo da mulher. Isso significa que, até esse ponto, se a mulher morrer, o feto morrerá também. Proibir abortos nos casos em que a vida da mulher corre risco não significa salvar o feto, apenas condenar mulheres à morte. A partir da 24ª semana de gravidez, é possível realizar uma cesárea de emergência para tentar salvar tanto a vida da mulher quanto a do feto. Contudo, a proposta da PEC ainda assim poderia proibir a realização de cesáreas nesses casos, pois não há como garantir que um bebê tão prematuro sobreviva. No fim, com uma proibição dessas, novamente se colocaria em risco a vida das mulheres, sem que isso signifique proteger a vida dos fetos. Em nome da defesa da vida, promove-se apenas a morte.

Em segundo lugar, mesmo que fosse possível salvar o feto e deixar a mulher morrer, por que seria essa a escolha moralmente certa? Se estamos diante de dois direitos conflitantes, por que valorizar o do feto e não o da mulher? A mulher é uma pessoa, membro de uma família, de uma sociedade. Ela tem toda uma vida vivida, tem vínculos de afeto com outras pessoas, e até pode já ter filhos que dependem dela. Por que valorizar uma vida em potencial mais do que a vida concreta da mulher? A mim me parece claro que a mulher, que já tem uma vida vivida, concreta, é quem merece ser salva nesse caso. A lei atual brasileira concorda com isso. A PEC propõe inverter essa lógica, colocando o feto acima da mulher, mesmo que com isso não se salve nem um, nem outro, mesmo que com isso se condene ambos à morte.

2) Essa PEC criminalizaria as mulheres que têm abortos espontâneos

Sofrer um aborto espontâneo de uma gravidez desejada é uma experiência extremamente dolorosa. Imagine se, além de lidar com essa perda, as mulheres ainda tivessem que lidar com uma investigação policial e risco de prisão. Se isso parece exagero, não é. Mirna Ramírez tinha 34 anos quando deu à luz prematuramente. Como Beatriz, ela mora em El Salvador. Mirna estava grávida de sete meses quando sentiu dor e foi ao banheiro. “Foi aí que ele [o bebê] saiu”, disse. Um vizinha que veio ajudá-la fez uma denúncia à polícia, acusando-a de ter induzido um aborto. O bebê sobreviveu; ainda assim, Mirna foi condenada a 15 anos de prisão. Em 2015, segundo grupos de direitos civis de El Salvador, havia 17 mulheres presas no país após terem sofrido abortos espontâneos.

Histórias como a de Mirna também acontecem nos Estados Unidos, onde o aborto é legal, mas os estados podem impor restrições, por exemplo, de tempo de gravidez, a seu acesso. Uma mulher grávida, no estado de Iowa, caiu em uma escada, buscou atendimento médico e foi presa, acusada de “tentativa de feticídio”. Em Louisiana, uma mulher que foi ao hospital devido a sangramento vaginal passou um ano presa, acusada de homicídio, até que se determinou que havia sofrido um aborto espontâneo.

Esse risco é especialmente grave considerando-se que até 50% de zigotos (óvulos fertilizados) são abortados espontaneamente, a maioria sem que a mulher sequer saiba que estava grávida. Se essa PEC fosse aprovada, qualquer mulher que, sem saber ainda que estava grávida, tomasse qualquer ação vista como danosa ao feto e depois sofresse um aborto espontâneo poderia ser condenada por homicídio. Qualquer mulher que sofresse um aborto espontâneo poderia ser alvo de uma investigação policial para determinar se houve um aborto induzido. Nada disso protegeria fetos, nada impediria que abortos espontâneos ocorressem, apenas geraria mais sofrimento para as mulheres que passarem por essa experiência por si só dolorosa.

3) Essa PEC forçaria mulheres a dar à luz mesmo quando não há qualquer chance de que o feto sobreviva

Imagine que você descobre que está grávida. Você passa a planejar a chegada do bebê, a vida em família que vocês terão. Você conta aos familiares, compra roupas de bebê, faz todos os preparos – e, claro, vai a todas as consultas médicas para garantir que tudo corra bem. Mas, numa dessas consultas, descobre que há algo errado. O feto tem um problema congênito e é impossível que sobreviva ao parto. De repente, todos os planos, todos os sonhos, toda a felicidade acaba. Mas a gravidez continua, dia a dia, um lembrete constante desse sofrimento.

Há casais que optam por levar a gravidez a termo, ter o bebê durante as poucas horas ou dias que sobreviver, e depois seguir com seu luto. Há os que preferem não prolongar seu sofrimento por semanas ou até meses, apenas para ver o filho morrer. É impossível sabermos com certeza o que escolheríamos se estivéssemos numa situação dessas, mas tenho certeza de que todos gostaríamos de tomar a decisão que esteja mais de acordo com nossa consciência, sem interferências da justiça. Com essa PEC, contudo, isso seria impossível.

Não precisamos olhar para outros países para sabermos quais seriam os efeitos dessa PEC nesses casos porque, até 2012, o aborto não era permitido no Brasil nessas situações. Em 2005, uma mulher descobriu que o feto que estava carregando tinha uma anomalia chamada Body Stalk. Em fetos com essa anomalia, os órgãos abdominais se desenvolvem fora do corpo e ficam ligados diretamente à placenta. É uma síndrome fatal. Como sabiam que o feto não sobreviveria, a mulher e seu marido entraram na justiça para solicitar um aborto. A justiça autorizou o aborto, mas um padre, Luiz Carlos Lodi, impetrou um Habeas Corpus alegando que o casal iria praticar um homicídio. A mulher já estava no hospital e já havia tomado medicamentos para induzir o parto, mas, por causa do Habeas Corpus, o procedimento foi interrompido e ela teve de voltar à sua casa. Ela agonizou por oito dias até dar à luz. O feto morreu logo depois do parto.

Como se pode falar em “proteção à vida” quando não há qualquer possibilidade de que o feto sobreviva? Como se pode justificar causar tamanho sofrimento a pessoas que já estão lidando com a dor de descobrir que o bebê sonhado não sobreviverá? Nenhuma mulher grávida jamais pode ser obrigada a abortar, segundo a lei já existente no Brasil, então quem seria protegido com uma tal proibição? Um feto que nascerá morto ou sobreviverá poucas horas ou dias? O que essa PEC propõe é imoral e não pode virar a lei do país.

4) Essa lei forçará mulheres que forem estupradas a ter os filhos de seus estupradores

Segundo dados do IPEA, no mínimo – no mínimo – 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil. Dessas, 70% são crianças e adolescentes. 24,1% dos agressores de crianças são os próprios pais ou padrastos. Dado que a gravidez é possível a partir do início da puberdade, meninas de apenas 11 ou 12 anos podem engravidar como resultado de estupro – e infelizmente vemos isso acontecer no Brasil.

É justo que uma vítima de estupro seja então forçada a ter o filho de seu estuprador? Considerando-se que a maioria das vítimas são crianças e adolescentes, e que uma gravidez nessa idade, além do trauma de ser forçada a carregar o filho do estuprador, dificulta ou até impossibilita a continuação dos estudos, é certo impor essa pena a essas meninas? Essa PEC imporia ainda mais sofrimento a vítimas de estupro, em nome de uma defesa abstrata da vida que não se preocupa com a vida real das mulheres e meninas que sofrem violência sexual.

5) Essa lei impediria as fertilizações in vitro e a pesquisa com células-tronco

Ainda que a maioria das pessoas deseje ter filhos, nem todos conseguem gerar filhos biológicos. Ao longo dos anos, várias técnicas foram desenvolvidas para ajudar pessoas com problemas de fertilidade a ter filhos. Uma dessas técnicas é a fertilização in vitro, na qual o óvulo e o espermatozoide são combinados fora do corpo, em um laboratório. Os óvulos fertilizados são então mantidos por alguns dias no laboratório, durante seu desenvolvimento inicial, e depois implantados na mulher.

Para muitos casais, a fertilização in vitro é a única forma de conseguir uma gravidez. Contudo, não há garantia de sucesso. Nos Estados Unidos, cerca de 40% das mulheres de menos de 35 anos que passaram por fertilização in vitro têm bebês. Essa proporção cai com a idade, com menos de 4% das mulheres de mais de 42 anos tendo bebês.

Essa proporção gera dois problemas para a a fertilização in vitro, caso a PEC for aprovada. Em primeiro lugar, em todos os casos em que as gravidezes não forem adiante – e que são a maioria – pode-se considerar que houve um homicídio, pois, afinal, houve a morte de um embrião, que, segundo a PEC, deve ser considerado uma pessoa com direito à proteção à vida. Em segundo lugar, devido à baixa probabilidade de sucesso, os médicos fertilizam vários óvulos, de forma a aumentar as chances de que ao menos um deles leve a um nascimento. Contudo, nem todos os embriões são implantados simultaneamente porque gravidezes múltiplas – ou seja, de mais de um feto – são perigosas para a mulher e têm maior probabilidade de partos prematuros, o que também ameaça a vida dos bebês. Os embriões que não são usados são armazenados para uso futuro e, se o casal decidir que não quer ter mais filhos, podem ser doados ou descartados. Se todos esses embriões forem considerados pessoas, com todos os direitos garantidos na Constituição, não será possível armazená-los, muito menos destruí-los. Dessa forma, as pessoas que desejarem fazer a fertilização in vitro terão que fertilizar apenas um óvulo de cada vez, diminuindo em muito a probabilidade, já pequena, de sucesso, ou implantar todos os óvulos fertilizados ao mesmo tempo, levando a uma gravidez arriscada e que pode levar à morte dos bebês, caso nasçam muito prematuros.

Por outro lado, também não seria possível usar a fertilização in vitro para evitar doenças congênitas, como por exemplo a doença de Tay Sachs, uma doença degenerativa, sem cura, que leva à morte após poucos anos. Em grupos de pessoas entre os quais essa doença é mais comum, casais podem lançar mão da fertilização in vitro para testar os embriões antes da implantação e apenas implantar aqueles que não terão a doença. Isso tampouco seria possível. Essa PEC, dessa forma, inviabilizaria a fertilização in vitro no Brasil, deixando sem qualquer apoio tanto casais com problemas de fertilidade quanto casais que queiram evitar que seus filhos tenham doenças congênitas.

Já a pesquisa com células-tronco seria inviabilizada porque depende de células embrionárias. Como já dito, os embriões que não são implantados podem ser doados, ou para outros casais que querem ter filhos, ou para a pesquisa. O uso das células embrionárias em pesquisa ou tratamento significa que o embrião é destruído, o que, se a PEC for aprovada, seria considerado homicídio. Só que estamos tratando de embriões que já não seriam implantados, e que portanto não podem se desenvolver e virar bebês. Por esse motivo, em 2008, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a pesquisa com células-tronco embrionárias estava de acordo com a Constituição, porque, segundo o relator, ministro Carlos Britto “para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano”.

Mas qual é a importância desse tipo de pesquisa? Como as células-tronco podem se transformar em qualquer célula do corpo, elas têm o potencial de auxiliar no tratamento de uma grande gama de doenças. Atualmente, há pesquisas buscando desenvolver tratamentos com células-tronco para doenças cardíacas, diabetes, doença de Parkinson, Alzheimer, e muitos outros. O que a PEC determina é que todo o potencial para salvar vidas presentes nessas pesquisas e tratamentos seja deixado de lado em favor de um potencial de vida abstrato, que pode nunca ser implantado e, portanto, nunca se desenvolver e virar uma pessoa.

Por todos esses motivos, peço que vocês acessem a consulta pública e votem não, que vão a protestos, que se manifestem publicamente, que deixem claro que os brasileiros e, sobretudo, as brasileiras merecem mais do que isso.

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O que se passa na cabeça de um anti-escolha

Daí você está buscando pesquisas de opinião sobre aborto no Brasil* e se depara com um blog de um padre dizendo, em 2013, que acabava de ser aprovada uma lei que “legalizava o aborto no Brasil”. O artigo é uma condensação tão perfeita das besteiras que as pessoas falam por aí que eu preciso compartilhar os melhores piores momentos com vocês. Primeiro, sobre o motivo da angústia do pobre** padre: é a lei 12.845, de 2013, que “Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual.” Ela não muda rigorosamente nada da situação legal do aborto no brasil, apenas estabelece que todas as vítimas de violência sexual precisam ter acesso a todos os serviços de saúde pertinentes, incluindo a contracepção de emergência e os serviços de aborto legal, quando necessários. Ok, vamos ao piti do padre:

O artigo primeiro afirma que os hospitais, – todos os hospitais, sem que aí seja feita nenhuma distinção -, “DEVEM OFERECER ATENDIMENTO EMERGENCIAL E INTEGRAL DECORRENTES DE VIOLÊNCIA SEXUAL, E O ENCAMINHAMENTO, SE FOR O CASO, AOS SERVIÇOS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL”.
Atendimento emergencial significa o atendimento que deve ser realizado imediatamente após o pedido, não podendo ser agendado para uma data posterior. O atendimento integral significa que nenhum aspecto pode ser omitido, o que por conseguinte subentende que se a vítima de violência sexual estiver grávida, deverá ser encaminhada aos serviços de aborto. Os serviços de assistência social aos quais a vítima deve ser encaminhada, que não eram mencionados no projeto original, são justamente os serviços que encaminharão as vítimas aos serviços de aborto ditos legais.
Portanto, uma vez o projeto sancionado em lei, todos os hospitais do Brasil, independentemente de se tratarem de hospitais religiosos ou contrários ao aborto, serão obrigados a encaminhar as vítimas de violência à prática do aborto. O projeto não contempla a possibilidade da objeção de consciência.
Na sua versão original, o artigo terceiro do projeto afirmava que o atendimento deveria ser imediato e obrigatório a todos os hospitais integrantes da rede do SUS que tivessem Pronto Socorro e Serviço de Ginecologia, mas a emenda do dia 5 de março de 2013 riscou a cláusula do “PRONTO SOCORRO E SERVIÇO DE GINECOLOGIA”, deixando claro que qualquer hospital, por menor que seja, não poderá deixar de encaminhar as vítimas de violência, se estiverem grávidas, aos serviços de aborto. O artigo primeiro sequer restringe os hospitais aos integrantes da rede do SUS.

Entenderam, galera? Os hospitais terão que encaminhar mulheres para um serviço do qual eles discordam! A equipe de um hospital religioso não poderá negar a uma mulher o acesso a um serviço ao qual ela tem direito por lei, mesmo se eles acharem que ela não deveria ter esse direito. As mulheres, e não a equipe, que vão decidir se querem ou não o aborto legal. E eles nem mesmo terão amparo na objeção de consciência para se recusarem a fazer seus trabalhos, pelos quais são pagos, dentro dos limites da lei. Onde já se viu?

E não bastando isso, a lei ainda define que é obrigatório informar às vítimas “sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis”. Segundo o padre,

É evidente aqui que o projeto está se referindo ao aborto. Apesar de que apenas afirme que trata-se de um fornecimento de informações, não se deve esquecer que o artigo primeiro estabelece ser obrigatório, quando for o caso, o encaminhamento aos serviços de assistência social. Isto significa que todos os hospitais, inclusive os religiosos, estão obrigados a encaminhar qualquer mulher grávida, que alegue ter tido uma relação sexual não consentida, a um serviço de aborto supostamente legal.

Eles não vão sequer deixar as equipes de hospitais religiosos omitirem informações sobre os direitos das vítimas de violência sexual. Para onde este país está indo?

Daí o padre continua:

O artigo segundo define que, para efeitos desta lei, “VIOLÊNCIA SEXUAL É QUALQUER FORMA DE ATIVIDADE SEXUAL NÃO CONSENTIDA”.
A expressão “TRATAMENTO DO IMPACTO DA AGRESSÃO SOFRIDA”, constante do artigo primeiro do texto original, foi suprimida e substituída por “AGRAVOS DECORRENTES DE VIOLÊNCIA SEXUAL”, para deixar claro que a violência sexual não necessita ser configurada por uma agressão comprovável em um exame de corpo de delito. Uma vez que o projeto não especifica nenhum procedimento para provar que uma atividade sexual não tenha sido consentida, e o consentimento é uma disposição interna da vítima, bastará a afirmação da vítima de que ela não consentiu na relação sexual para que ela seja considerada, para efeitos legais, vítima de violência e, se ela estiver grávida, possa exigir um aborto ou o encaminhamento para o aborto por parte de qualquer hospital.
As normas técnicas do Ministério da Saúde publicadas durante o governo Lula afirmam que as vítimas de estupro não necessitam apresentar provas ou boletins de ocorrência para pedirem um aborto dos hospitais credenciados. Basta apenas a palavra da mulher, e os médicos terão obrigação de aceitá-la, a menos que possam provar o contrário, o que usualmente não acontece.

Além de forçarem os pobres hospitais religiosos a encaminharem mulheres para outros serviços previstos em lei, sem dar a eles nem mesmo o direito de esconder das mulheres que elas têm direito a realizar um aborto, o projeto tampouco dá a eles o direito a se negar a atender mulheres que foram estupradas depois de terem sido drogadas, ou que foram estupradas sob coação, sem uso de violência física, ou que estavam em relacionamentos abusivos, ou que têm medo de ir à polícia, ou que simplesmente estavam tão traumatizadas que demoraram demais a fazer uma denúncia e, portanto, passaram do ponto em que seria possível comprovar um estupro com um exame físico. E também nega aos médicos o direito de realizar exames invasivos em mulheres que foram vítima de violência sexual como pré-requisito para que elas possam exercer o seu direito de interromper a gravidez. Realmente, é o fim dos tempos.

O padre também nos dá esta pérola:

pelo menos [antes desta lei, na visão dele] a mulher deveria afirmar que havia sido estuprada. Agora não será mais necessário afirmar um estupro para obter um aborto. Bastará afirmar que o ato sexual não havia sido consentido, o que nunca será possível provar que tenha sido inverídico.

“A mulher não precisará dizer que está grávida, bastará afirmar que tem um feto no útero”

O padre também não contém sua indignação em relação a um último ponto:

O inciso quarto do artigo terceiro lista, ainda, como obrigação de todos os hospitais, em casos de relação sexual não consentida, “A PROFILAXIA DA GRAVIDEZ”. Note que a lei não especifica o que deve ser entendido como”PROFILAXIA DA GRAVIDEZ”. O termo aparentemente é novo e recém inventado especialmente para este projeto de lei. Terá, portanto, mais adiante, que ser regulamentado ou interpretado, pelo legislativo ou pelo judiciário, quando surgirem as primeiras dúvidas sobre o seu significado. Hoje ninguém sabe o que isto poderá significar amanhã. Os senhores parlamentares foram propositalmente enganados para assinarem um cheque em branco.

Sim, ninguém sabe o que significa “profilaxia da gravidez”. É um termo totalmente vazio, colocado na lei só para criar uma brecha na criminalização do aborto. Tudo bem que uma busca na Wikipédia traz um artigo que diz que “Na área da saúde, do grego prophýlaxis (cautela), é a aplicação a evitar a propagação de doenças.” E ok, uma pessoa que não está prestando atenção pode achar que isso significa que “profilaxia da gravidez” portanto significaria evitar a ocorrência da gravidez. E essa mesma pessoa também poderia argumentar que o aborto já é permitido em casos de estupro, então não faria sentido querer criar essa possibilidade por meio de um termo novo, que aliás diz respeito à prevenção, e não à interrupção da gravidez, quando essa possibilidade já existe. E é verdade também que os defensores dessa lei vão dizer que a “profilaxia da gravidez” diz respeito à contracepção de emergência, que, como o nome já diz, é para evitar a concepção, não interromper a gravidez. Mas o corajoso padre sabe que isso tudo é desculpa porque, na verdade, “profilaxia da gravidez” é um termo inventado, sem sentido, e que só está na lei para garantir que o aborto seja legalizado no Brasil no futuro.

Uma última causa de revolta do padre é o fato de as pessoas que defendem o direito das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo terem estratégias nefastas para alcançar seu objetivo, como mostra o seguinte trecho citado pelo padre:

Assegurar ao máximo a prestação de serviços previstos pelas leis existentes que permitem o aborto em certas circunstâncias possibilita abrir o caminho para um acesso cada vez mais amplo. Deste modo os provedores de aborto poderão fazer uso de uma definição mais ampla do que constitui um perigo para a vida da mulher e também poderão considerar o estupro conjugal como uma razão justificável para interromper uma gravidez dentro da exceção referente ao estupro. Desde o início dos anos 90 profissionais e ativistas de várias cidades do Brasil estão trabalhando com o sistema de saúde para ampliar o conhecimento das leis e mudar o currículo das faculdades de medicina.

Essas feminazi querem que as pessoas, e especialmente os futuros médicos, conheçam as leis de seus países, saibam que é possível um marido estuprar sua esposa, e que “perigo para a vida” não se trata apenas das ameaças mais imediatas e, portanto, óbvias, mas pode-se referir a outras consequências para a saúde física e mental. Absurdo total. (Só é pena que o link que ele fornece para essa citação caia num 404. Parece um documento interessante).

Aqui é o momento em que eu lembro a vocês que essa genialidade toda está ganhando, de lavada, o debate na opinião pública, para vocês compartilharem meu sofrimento cotidiano. Queria ter algo mais interessante para fechar o texto, mas é a única coisa que consigo dizer a esse ponto.

*Da série: coisas que deveriam ser simples, mas na prática são uma dor de cabeça. Devo escrever sobre isso também em breve.
**Doses cavalares de sarcasmo em todo o post, obviamente.

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A pediatra, a petista e a objeção de consciência

Uma pediatra de Porto Alegre se recusou a atender uma paciente porque sua mãe é petista. Rapidamente, representates de entidades médicas vieram à sua defesa, dizendo que o Código de Ética Médica permite a recusa de pacientes. Isso é verdade? E por que isso merece ser discutido num blog feminista?

Responder a primeira pergunta é surpreendentemente mais difícil do que pode parecer. Os que afirmam que a médica tinha direito de recusar o atendimento se respaldam nos seguintes artigos do Código:

Capítulo I

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

Capítulo V

É vedado ao médico

Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados.

§ 1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder.

Esses artigos realmente parecem dar razão à médica, só que existe uma complicação. O primeiro capítulo do Código estabelece seus princípios fundamentais. O primeiro princípio, e portanto o mais fundamental, é:

I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. (ênfase minha)

Já o Capítulo IV, que trata dos direitos humanos, estabelece que é vedado ao médico “tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto”. (art. 23)

O que constitui discriminação nesse contexto? O Código não diz. Contudo, no segundo capítulo, que estabelece os direitos dos médicos, o Código afirma que é direito do médico:

I – Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza. (ênfase minha)

A não ser que os Conselhos de Medicina entendam que existe um conjunto de discriminações possíveis para os médicos e outro para os pacientes, deixar de prestar atendimento por questão de opinião política é discriminação. E isso, diz o próprio Código, fere o princípio ético mais fundamental da profissão.

Se isso é uma interpretação legalmente aceitável, eu não sei, como não sei se algum Conselho de Medicina puniria um médico por comportar-se dessa forma (chuto que não). A questão é apenas de coerência. Se é discriminação um médico ser impedido de trabalhar por sua opinião política, então também deve ser recusar-se a prestar atendimento pelo mesmo motivo.

Tá, mas e o que isso tem a ver com feminismo? O que me chamou atenção e me fez querer escrever sobre o tema é que os artigos que os defensores da médica estão usando para apoiá-la são os que estabelecem a objeção de consciência. A objeção de consciência é velha conhecida das feministas porque os casos mais comuns em que é invocada são os de aborto. É com base nesses mesmos artigos que médicos se recusam a realizar abortos, alegando que isso “contraria os ditames de sua consciência”. Não deve ser surpresa para ninguém que eu me oponho ferozmente à existência dessa possibilidade.

Pense no seu emprego e nas atividades que dele fazem parte. Imagine que um dia você chegue no seu trabalho e diga que não realizará mais uma dessas atividades porque contraria os ditames da sua consciência. Como a chefia reagiria a isso? A não ser que você seja médico, imagino que não aceitariam isso como desculpa para deixar de cumprir as tarefas para as quais foi contratado e pelas quais é remunerado.

A verdade é que todos temos o direito de nos recusar a exercer atividades profissionais com que discordamos moralmente, mas a forma de exercer esse direito é não aceitando empregos que incluam essas atividades. Ninguém é obrigado a fazer medicina. Nenhum médico é obrigado a se especializar em ginecologia e obstetrícia. Ninguém com essa especialização é obrigado a atuar em um serviço em que abortos são realizados. Isso se aplica a qualquer procedimento legal autorizado pelo Conselho Federal de Medicina. Colocar o direito à objeção de consciência no Código de Ética Médico é colocar os médicos não só acima de qualquer outra categoria de profissionais, dado que ganham a distinção de poder recusar-se a fazer seu trabalho e ainda manter seu emprego, mas também acima do dever de atendimento ao paciente, do serviço à “saúde do ser humano e da coletividade”.

Penso o mesmo sobre o direito a recusar-se a atender pacientes, pelo menos nos serviços públicos. Pode-se pensar em uma exceção para o atendimento em consultórios particulares – afinal, todos os profissionais autônomos têm liberdade para aceitar ou não trabalhos –, mas apenas se for claramente definido o que constitui um motivo justo para a recusa e o que constitui discriminação. O Código de Ética Médico falha nesse ponto e a disposição das entidades médicas para defenderem o que claramente é uma ação discriminatória demonstra descaso com o alto padrão ético que a profissão deveria ter. Espero que esta situação ajude-nos a rever a forma como encaramos a medicina e os deveres e direitos dos médicos. Já está na hora.

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Introdução ao gênero: orientação sexual

Esta é a terceira e última parte da introdução sobre o gênero. Aqui estão a apresentação, a primeira parte, sobre sexo, e a segunda, sobre gênero.

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A orientação sexual seria a última parte do esquema de senso comum que vimos na apresentação: o sexo (binário) leva ao gênero (binário) que leva à orientação (hetero)sexual. Já sabemos que há muito mais do que duas possibilidades tanto no sexo quanto no gênero e que não há nenhuma relação necessária entre os dois. Só com base nisso, já podemos descartar a ideia de que a heterossexualidade é “natural” ou “certa”. Há mais a se dizer do que só isso, então vamos começar com alguns termos.

Você provavelmente já sabe que existem pessoas que sentem atração por pessoas do mesmo gênero e se identificam como homossexuais, gays ou lésbicas (se forem mulheres que sentem atração por outras mulheres). Existem pessoas que sentem atração por homens e mulheres e se identificam como bissexuais. Algumas pessoas, reconhecendo a inexistência do binarismo de gênero, preferem se identificar como pan ou omnisexuais – ou seja, sentem atração por pessoas de todos os gêneros. Menos conhecidos são os assexuais, pessoas que não sentem (ou sentem muito pouca) atração sexual. Pessoas assexuais podem ainda assim buscar e ter relacionamentos românticos*, apenas sem a dimensão sexual. Existem ainda pessoas que consideram sua orientação sexual fluida e que num momento de vida se identificam de uma forma e, num outro, de outra. Mesmo para quem não tem uma sexualidade fluida, ela não é tão rígida. Já sabemos disso desde, pelo menos, a década de 1940, quando Alfred Kinsey e seus colegas fizeram um estudo inovador sobre a sexualidade humana. Para esse estudo, desenvolveram a escala Kinsey, que classificava a orientação das pessoas de 0 (exclusivamente heterossexual) a 6 (exclusivamente homossexual), com os valores de 1 a 5 representando diferentes níveis de desejo por atividade sexual com homens e mulheres. Ainda que tenham recebido críticas, um achado específico, de que poucas pessoas são 0 ou 6 perfeitos, permanece relevante. O ponto mais importante é este: a realidade é mais diversa e mais complicada do que nossas representações de senso comum fazem parecer.

Bom, se não existe relação necessária entre sexo/gênero/orientação sexual, o que explica o fato de as pessoas terem a orientação sexual que têm? Aqui também vemos apelos frequentes à biologia. De tantos em tantos meses, vemos notícias falando da descoberta de algum “gene gay”, ou sobre como o cérebro de homens gays é parecido com o de mulheres hetero, ou alguma bobagem assim. Novamente, não há qualquer base científica para essas alegações. Os estudos que anunciavam ter descoberto o “gene gay” (e que parecem ter saído de moda, felizmente) não costumavam passar de associações tênues da presença de um gene com a atração por pessoas do mesmo gênero. Já discutimos os problemas dos estudos da área de neurociência. Há também um problema de hipersimplificação do que a sexualidade é. A atração vai muito além do gênero. O que é considerado bonito e atraente varia dependendo do contexto social. Mesmo que você se contraponha aos padrões de beleza, é inegável que eles exercem uma forte influência sobre nossa visão de nós mesmos e dos outros. Esses padrões (machistas, racistas, capacitistas**, gordofóbicos, etc., diga-se de passagem) certamente não podem ser reduzidos a um gene ou uma coformação do cérebro. A sexualidade também envolve o que se faz, e não só com quem. Isso escapa completamente à classificação hetero/homo/bi/etc. Não só isso, mas também é culturalmente mediado – o que é socialmente aceito? O que é tabu? O que “se faz” e o que “não se faz”? Isso não significa que todas as pessoas se comportem da mesma forma, mas que existem padrões que só podem ser compreendidos quando se leva em consideração o contexto das pessoas.

Voltamos ao mesmo ponto do último post: sabemos que existem pessoas com orientações diversas, ainda que não saibamos explicar por que. Como disse sobre a identidade de gênero, “Não precisamos de uma explicação científica para aceitarmos a autodefinição das pessoas, para acreditarmos quando falam de suas próprias experiências”.Contudo, isso ainda não justifica falar sobre orientação sexual numa introdução sobre gênero, dado que, como vimos, os dois não têm nenhuma relação necessária.

Aí que está o X da questão: a orientação sexual não tem relação necessária com o gênero em termos de um definir o outro mas há, sim, uma relação em termos da última dimensão do gênero que discutimos, ou seja, o gênero como uma forma de distribuir poder. Há uma relação muito estreita entre o policiamento de gênero e as tentativas de reprimir sexualidades consideradas desviantes porque a estrutura pressupõe a existência apenas de homens e mulheres e a heterossexualidade faz parte de sua caracterização. Um homem que sinta atração por outros homens está “se igualando” a uma mulher, nessa lógica, da mesma forma que uma lésbica “se iguala” a um homem. Pessoas queer***, simplesmente por existirem, ameaçam a estrutura e os privilégios que as pessoas cis e hetero recebem dela. É nessa lógica que se insere a violência homofóbica e lesbofóbica, as agressões e assassinatos e, especificamente no caso de lésbicas, os “estupros corretivos”. O objetivo é eliminar as ameaças à estrutura ao eliminar as pessoas que nela não se enquadram. Gênero e sexualidade estão, assim, intimamente associados e se autorreforçam, mas não da maneira como a visão de senso comum imagina.

É importante lembrar que essas estruturas não agem de forma binária. Não se trata de ter ou não privilégio, se beneficiar ou se prejudicar. Uma mulher cis e hetero recebe privilégio de ser essas duas coisas da mesma estrutura que a prejudica por ser mulher. Homens cis gays têm privilégio de gênero como resultado da mesma estrutura que os prejudica por sua orientação sexual. E por aí segue, em todas as combinações possíveis. É especialmente importante atentar para essas dinâmicas porque a tendência é que elas se reproduzam mesmo em espaços de luta por mudança social. Já falei um pouco da transfobia do movimento feminista. O movimento LGBT também tem dado mais espaço às demandas de seus membros com mais privilégio – os homens cis brancos de classe média.

Encerro por aqui esta breve introdução ao gênero. Como já disse, existe uma quantidade enorme de textos – acadêmicos, de militância, relatos pessoais – para cada ponto tratado nesta série. Espero que os meus textos ajudem a dar um pontapé inicial nessa discussão, especialmente no que diz respeito a desnaturalizar e desconstruir a visão de senso comum por aí.

*Algumas pessoas assexuais têm, assim, uma orientação romântica: trata-se das pessoas com quem buscam envolvimento romântico, não sexual.

** Capacitismo é a concepção de que pessoas com deficiência não são iguais, são incapazes, menos aptas do que as outras. No que diz respeito aos padrões de beleza, estamos falando da percepção de que pessoas com deficiência não podem ser belas ou atraentes, inclusive apagando sua sexualidade. Obrigada à Beatriz Barreto e à Fernanda Nunes pela correção do termo!

***Um termo amplo que abarca todas as pessoas que não são cisgênero e/ou heterossexuais

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Dicas para preparar um texto para tradução

Perguntei aos meus amigos se este guia seria interessante e obtive respostas positivas suficientes para escrevê-lo. Tenha em mente algumas coisas:
1) Tenho experiência basicamente com textos acadêmicos e alguns textos de divulgação. O objetivo de todos é comunicar alguma informação da forma mais clara possível e é esse o critério que orienta estas dicas. Em outros tipos de texto, questões de estilo pessoal ou de aproximação da forma de falar de certas pessoas podem ser mais importantes. 2) Há casos em que alguém escreve um texto, publica-o e depois alguém decide que vale a pena traduzi-lo. Óbvio que, nesses casos, as pessoas devem escrever da forma que for mais conveniente e os tradutores que se virem. Aqui, estou pensando nos casos em que alguém escreve um texto com o propósito específico de traduzi-lo para outra língua. 3) Faço traduções português-inglês e as dicas aqui refletem isso. Traduções entre línguas latinas costumam ser mais acomodadoras das particularidades dos estilos de cada uma. O inglês introduz uma diferença maior (e, portanto, requer mais trabalho). Acho que ainda assim vale porque o inglês é * a * língua internacional, o que significa que em muitos, quando não na maioria, dos casos, é a língua para a qual o texto será traduzido. Além disso, muito do que vou dizer aqui ajuda independentemente de qual seja a língua. 4) Bons tradutores são capazes de compensar muitos dos problemas sobre os quais trato aqui. Contudo, há limites até para o que bons tradutores podem fazer e, como a qualidade do trabalho das pessoas varia, me parece melhor ter um texto que assegure o mehor resultado possível, independentemente de quão boa a pessoa é que irá fazer o trabalho.

O cerne dos meus conselhos é: simplifique. Aqui no Brasil não somos exatamente objetivos quando escrevemos e isso se reflete em más traduções que não conseguem tirar a gordura dos textos e ficar apenas com o que importa. Em termos práticos, simplificar significa:

usar menos a voz passiva. Por algum motivo que me escapa, é considerado de extremo mau gosto dizer diretamente que você fez alguma coisa em textos acadêmicos. Escrevemos que “a pesquisa foi feita”, “dados foram coletados”, “resultados foram encontrados”, e por aí vai (ou dizemos “nós fizemos” mesmo quando há apenas um autor). No inglês, esse tipo de estrutura é a morte. É claro que há muitos casos em que é simples fazer a mudança (“coletei os dados”, “encontrei os resultados”), mas nem sempre é o caso. Melhor fazer o esforço de usar menos a voz passiva.

escrever frases mais curtas. Já vi textos com frases de sete, nove, doze linhas (e, geralmente, textos assim costumam ter vários exemplos de frases longas). Isso já não funciona muito bem em português. Em inglês, é um desastre. Considere bem o que você está escrevendo. Qualquer frase com mais de duas linhas merece ser encarada com suspeita. Na maior parte dos casos, é possível separá-las em várias com facilidade. Fazer isso aumenta as chances de um bom texto final.

não usar termos diferentes para se referir à mesma coisa. Isso é muito comum. Para evitar a repetição, dizemos, por exemplo “as trabalhadoras”, “as funcionárias”, “as mulheres empregadas pela empresa X”, “as entrevistadas”, “as informantes” para descrever um mesmo conjunto de pessoas. O número de sinônimos aumenta quanto mais central ao texto for o conceito. Em inglês, isso só serve para gerar confusão. Tente usar apenas um termo e usar mais pronomes – no caso do exemplo, ao invés de substituir “as trabalhadoras” por qualquer um dos outros termos, usar apenas “elas”.

mudar a forma de introduzir parágrafos. Outra coisa muito comum em textos em português: começar parágrafos com “Em termos de…”, “Com relação a …”, “No que diz respeito a …”. Isso na verdade não adiciona nada em termos de conteúdo, é apenas uma forma padrão de se fazer a ligação entre parágrafos – o que é ótimo em português, mas não funciona em inglês. Num texto em inglês, esse tipo de introdução parece excessivo e torna a leitura chata. Quando for revisar seu texto, tente ter isso em mente.

Algumas dicas adicionais, que não cabem sob o rótulo de simplificação, são:

incluir os termos técnicos em inglês. Em muitos casos, quando estamos escrevendo textos acadêmicos, usamos termos técnicos e conceitos de origem inglesa. Pesquisar esses termos faz sim parte do trabalho dos tradutores, mas, se você já sabe o que eles são, não custa incluí-los. Isso agiliza o trabalho e garante que o seu texto não acabará com termos errados.

incluir informações que não são de conhecimento de estrangeiros. Informações sobre o contexto local ou nacional podem parecer auto-evidentes, mas, para leitores estrangeiros, não são. Seu texto cita leis específicas? Órgãos de governo? Políticas públicas? Regras institucionais? Mesmo que não cite diretamente, saber alguma dessas coisas é importante para entender do que você está falando? Inclua uma pequena explicação para situar seus leitores. Novamente, bons tradutores adicionam informação de contexto ao texto final, mas não necessariamente terão familiaridade suficiente com o tema para saber que uma informação é importante.

enviar o texto original mesmo em pedidos de revisão da tradução. Saber se uma tradução está bem feita depende de saber o que estava escrito no original. É bom lembrar que se a tradução não estiver bem feita, a revisão pode dar mais trabalho do que fazer uma nova e a pessoa que você contratou cobrará de forma condizente com esse trabalho.

ter um só tradutor. Eu entendo que isso nem sempre é possível. Textos acadêmicos passam por muitas revisões, especialmente quando são escritos por muitos autores. Às vezes você contratou alguém para fazer a tradução e depois não quer jogar fora nem o trabalho, nem o valor que pagou só porque fez algumas alterações no texto original. De qualquer forma, é sempre preferível ter só uma pessoa encarregada da tradução, da mesma forma que, num texto escrito a muitas mãos, é bom ter alguém encarregado da redação final. Tradutores têm estilos diferentes, fazem escolhas diferentes e o resultado final corre o risco de ficar pouco coeso se mais de um for responsável pelo trabalho.

E o último, e mais importante: O GOOGLE TRANSLATE NÃO É SEU AMIGO. Se você não consegue escrever o texto em uma língua também não tem capacidade para julgar se o que o Google Translate sugeriu é absurdo (e com frequência é). Afaste-se do computador e peça para alguém com domínio da língua e conhecimento de tradução fazer o trabalho.

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Introdução ao gênero: gênero

É tão bom quando você começa uma série de posts e só depois percebe que o título de um deles vai ficar redundante…

Enfim, esta é a segunda parte da introdução sobre o gênero. Ela começa na apresentação; a parte 1 é sobre sexo.

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Você poderia passar o resto da vida estudando gênero. Existem cursos inteiros, livros, artigos, documentários, todo um mundo de coisas que eu obviamente não terei condição de abordar aqui. Neste texto, vou me concentrar em três ideias centrais: identidade de gênero, expressão de gênero e gênero como forma de distribuir poder na sociedade.

A identidade de gênero é o que está contido, por exemplo, na frase “sou mulher”. É como as pessoas se identificam. Colocar nesses termos já cria uma mudança em relação ao que estamos acostumados a pensar. Geralmente pensamos o gênero como algo que se é, como na frase acima. Há críticas a essa ideia que veremos mais à frente, mas o ponto a que quero chegar agora é o seguinte: se entendemos que não há nenhuma relação necessária entre sexo e gênero, se não há nenhuma base biológica para que se determine o gênero de uma pessoa, então a única maneira de se saber o gênero de alguém é sabendo como ela se identifica. Para entender melhor isso, vamos ver alguns conceitos ligados à identidade de gênero.

Quando nascemos, somos designados um gênero com base nos órgãos genitais. A maioria das pessoas, sendo do sexo masculino ou feminino, é designada como homem ou mulher, respectivamente. Aquelas pessoas que não se enquadram em uma das pontas do contínuo do sexo biológico também costumam ser designadas como um ou outro gênero, mas, nesses casos, as famílias costumam entender isso como uma escolha mais explícita do que quando se trata de crianças que estão nas pontas. Para a maioria das pessoas, a ideia de que o gênero (binário) segue do sexo (binário) é tão óbvia que pensam que uma criança necessariamente é menina por ter vagina ou necessariamente é menino por ter pênis. Em qualquer caso, ao escolher um nome, ao tratar a criança por pronomes femininos ou masculinos, ao escolher roupas, brinquedos, as cores do quarto, a família está fazendo uma escolha. É, na melhor das hipóteses, um chute: você diz a identidade de gênero que acha que será a da criança. Na pior das hipóteses, torna-se uma imposição violenta à criança de algo que ela não é.

Isso porque, enquanto a maioria das pessoas se identifica com o gênero que lhes foi designado ao nascer, algumas pessoas, não. Chamamos de cisgênero, ou apenas cis, as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi designado e transgênero, ou trans, as que não se identificam. Algumas pessoas trans se identificam como homens ou mulheres, mas outras se identificam como não-binárias. Isso significa que elas não se enquadram numa visão em que há apenas dois gêneros, homem e mulher. Algumas não se identificam com nenhum dos dois, outras se identificam com ambos, outras se identificam com um dos dois, mas não completamente, algumas têm uma identidade mais fluida, que passa de um a outro em momentos diferentes de vida… – e isso sem entrar na grande variedade de possibilidade de gêneros que existem em outras culturas. (Este vídeo traz uma discussão longa sobre diferentes identidades de gênero*)

Para pessoas cisgênero, que concordavam com o gênero que a família lhes impôs, que cresceram sem nunca ter sua identidade de gênero contestada, pode ser difícil entender que o gênero é algo com que ativamente nos identificamos, que fazemos ativamente, ao invés de uma essência, algo que somos desde que nascemos. Isso pode ser mais perceptível para pessoas trans, mas é verdade para todos. Isso também significa que nenhuma identidade de gênero é mais certa ou mais válida do que outras. Não é porque a maioria das pessoas é cis e binária, ou porque suas experiências não lhes permitem enxergar a falsidade da ideia de um gênero que segue, necessariamente, de um sexo biológico, que ser cis e/ou binário seja “natural” ou “certo”.

Por que algumas pessoas se identificam como homens, outras como mulheres, outras como não-binárias? Por que algumas pessoas são cis e outras trans? Há pessoas que tentam explicar isso com base na existência de cérebros masculinos ou femininos. Como já vimos, essa explicação não faz nenhum sentido.

Uma parte importante do motivo é o fato de que vivemos em uma sociedade organizada em torno do gênero. Somos expostos a ideia de que todas as pessoas têm gênero (mais especificamente, que são homens e mulheres) e que nós também temos desde que nascemos. Para falantes de línguas como o português, em que todos os substantivos têm gênero, em que artigos, adjetivos e pronomes todos concordam com gênero, essa compreensão do mundo (e de nós mesmos) é ainda mais reforçada.

Isso não responde totalmente a pergunta, obviamente. A verdade é que não há, até onde eu saiba, uma explicação definitiva. Isso, contudo, não nos impede de reconhecer que identidades de gênero múltiplas existem. Não precisamos de uma explicação científica para aceitarmos a autodefinição das pessoas, para acreditarmos quando falam de suas próprias experiências. Isso é especialmente importante em relação a pessoas trans e não-binárias, que são alvo de discriminação intensa em nossa sociedade, sendo constantemente silenciadas, representadas de forma preconceituosa e submetidas à aprovação da autoridade médica simplesmente para terem suas identidades reconhecidas.

Se a identidade de gênero é como a pessoa se identifica, a expressão de gênero está ligada à ideia de gênero como algo que fazemos. Aqui cabe entrar um pouquinho numa discussão mais acadêmica e falar do conceito de gênero como performance, da Judith Butler. Butler rejeita completamente a ideia de que gênero é algo que se é. Para ela, o gênero é um tipo de performance, algo que se faz. Segundo ela, é a “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos dentro de um quadro regulatório rígido que se solidificam ao longo do tempo para produzir a aparência de substância, de um tipo natural de ser”. Vamos por partes porque o texto em si não é o mais claro possível. Quando ela fala de “atos repetidos” e da “estilização do corpo”, está se referindo a uma série de coisas, como a forma como as pessoas se portam, a forma como andam, como falam, como cortam o cabelo, as roupas que usam, etc. É uma estilização do corpo porque nada disso é natural, nada decorre naturalmente de um gênero, mas são coisas que introjetamos ao repeti-las ao longo dos anos, até que passam a parecer naturais. (Se ainda assim estiver complicado, este vídeo, que discute esse conceito a partir do jogo The Sims, talvez ajude.**)

A expressão de gênero, é, assim, o fazer o gênero, são as ações que tomamos que comunicam (e, para Butler, criam) nosso gênero. Há um segundo ponto da citação que é importante aqui: essas ações, segundo Butler, estão inscritas em um “quadro regulatório rígido”. Dizer que gênero é performance não é dizer que seja livre, muito pelo contrário. Existem expectativas sociais rígidas em relação ao gênero. Elas são regulatórias porque são essas expectativas que tornam o gênero inteligível. É ao nos conformarmos a essas expectativas que somos vistos como mulheres ou homens (a este ponto já deve estar claro que essas expectativas são estritamente binárias e que qualquer identidade que fuja ao binarismo também foge a essa inteligibilidade).

Que fique claro que ninguém corresponde plenamente a essas expectativas porque isso é impossível. Ainda assim, a maioria das pessoas se adequa em grande medida a essas expectativas. Por que? Pelo menos em parte, justamente porque crescemos com elas e introjetamo-nas. Nossa compreensão do que é ser mulher ou homem (e portanto do que somos ao sermos mulheres e homens) é informada por essas expectativas. Há também um preço a se pagar quando se desvia dessas expectativas, e essa é a outra maneira como elas agem de forma regulatória. Não se conformar às expectativas significa não ser inteligível, não ter sua identidade reconhecida, mas também pode significar sofrer discriminação e até violência. Isso é especialmente grave para pessoas trans. Em muitos países, uma pessoa trans tem que se submeter a cirurgias e/ou tratamentos hormonais para poder mudar seus documentos de forma que reflitam sua identidade de gênero. Conformar-se às expectativas e, mais ainda, parecer ser cis é com frequência a única forma de terem suas identidades respeitadas e, em muitos casos, é literalmente questão de vida ou morte. Essa cobrança, às vezes até por meio de violência, de que as pessoas correspondam às expectativas de gênero é o que chamamos de policiamento de gênero.

Essas expectativas não são iguais para todas as pessoas. O que espera-se de uma mulher é diferente de acordo com sua raça, classe, idade, e muitas outras dimensões. Ser mulher – ou fazer-se mulher – será diferente dependendo da posição que se ocupa nessas diferentes estruturas. Consequentemente, o policiamento de gênero também é diferente. Se uma mulher jovem usa roupas curtas ou justas, isso é considerado bonito, sexy. Se uma muher com mais de 60 anos faz o mesmo, ela é ridícula. Quando a Miley Cyrus se apropria do estilo de dança que os americanos chamam de twerking, é provocador, inusitado. Quando mulheres negras, especialmente de classe baixa, dançam da mesma forma, é vulgar.

A questão do policiamento de gênero nos leva ao último ponto deste texto, que é sobre como o gênero funciona como forma de distribuir poder na sociedade. Não quero entrar numa discussão do que poder é ou como exatamente defini-lo. Podemos concordar que existem diferentes tipos de poder na sociedade – o político, o econômico, o poder da mídia de determinar que histórias são contadas, o poder de tomar decisões numa família, e por aí vai. Nenhum desses tipos de poder é compartilhado igualmente por todos. Existem diferentes estruturas que determinam como esse poder é distribuído, como classe, raça e gênero. Negar o direito ao voto às mulheres é uma forma clara de concentrar o poder político, por exemplo, mas existem formas mais sutis de reduzir o poder das pessoas. O fato de mulheres serem desproporcionalmente responsáveis pelo trabalho doméstico é um exemplo. Isso impede que mulheres compitam em pé de igualdade no mercado de trabalho e as mantém numa posição subordinada em suas famílias. Ou o fato de a sociedade não protegê-las da violência sexual e doméstica, deixando-as à mercê de agressores e empurrando-as para longe de espaços públicos, que, afinal, não são (tornados) seguros. O policiamento de gênero é também uma forma por meio da qual o gênero leva a uma distribuição desigual de poder. Qualquer pessoa que desvie das expectativas de gênero é uma ameaça a toda essa estrutura. Manter a estrutura de gênero (que é uma estrutura de poder) significa eliminar as possibilidades que desviam do roteiro.

Em nossa sociedade, a estrutura de gênero privilegia homens, pessoas cis, pessoas binárias e pessoas cuja expressão de gênero está de acordo com expectativas. Mas essa estrutura não existe sozinha. Ela interage com outras estruturas de poder, gerando diferentes tipos de (falta de) privilégio. Um exemplo perfeito disso é o famoso discurso “Ain’t I a woman?” (“Não sou uma mulher?”) de Soujorner Truth, uma norte-americana negra, ex-escrava, abolicionista e feminista. Nele, Truth aponta o que se diz de mulheres, que são delicadas e precisam de ajuda, e mostra como isso não se aplica a ela. Como escrava, Truth foi forçada a exercer um trabalho árduo durante longas horas. Da mesma forma, enquanto a maternidade de mulheres brancas e ricas era louvada, a dela era desconsiderada: seus filhos foram tirados dela, mera propriedade de alguém. Para uma mulher branca, a valorização da maternidade e a ideia de que mulheres são intelectual e fisicamente inferiores aos homens são formas de restringi-las à esfera doméstica e retirar-lhes poder e agência. Para mulheres negras, contudo, as representações de gênero não são iguais. Raça e gênero se combinam para gerar uma situação de exploração de seu trabalho e de seus corpos. Tudo o que Truth diz se aplica ao Brasil e suas consequências são sentidas até hoje, como vimos no debate sobre a PEC das domésticas. O conceito de interseccionalidade, o último de hoje, diz respeito justamente à forma como essas diferentes estruturas interagem umas com as outras para produzir as experiências das pessoas.

Para encerrar o texto, que já está longuíssimo, queria falar algumas coisas sobre feminismo. Existem muitos estereótipos sobre o que o feminismo é ou como as feministas são que têm o propósito de deslegitimar o que dizemos. O feminismo apenas reconhece que vivemos numa sociedade desigual em termos de gênero e que essa desigualdade é injusta. Isso não significa que o movimento feminista seja perfeito. Historicamente, o movimento feminista valorizou as demandas das mulheres mais privilegiadas, as brancas, cisgênero, de classe média, ignorando as vozes das demais. Esse problema está longe de ser resolvido. A transfobia de certas pessoas dentro do movimento é triste evidência disso. Mesmo assim, contribuiu para tornar a sociedade mais justa e acredito que pode contribuir ainda mais. Espero que esta breve introdução à discussão de gênero ajude a convencê-los do mesmo.

Continua na parte 3!

* Infelizmente, sem legendas
** Com legendas, mas só em inglês

 

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Introdução ao gênero: sexo

Primeira parte da introdução ao gênero que começou na apresentação

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Esta parte é fácil, certo? Seres humanos têm diferenças físicas óbvias relacionadas à reprodução que dividem-nos em dois grupos. Podemos encerrar a discussão por aqui e partir para outras coisas.

Exceto que a realidade é mais complicada do que isso.

Vamos primeiro pensar no que o sexo é. O sexo, tal como o entendemos, é a combinação de diferentes características: cromossomas, hormônios, órgãos reprodutores e características secundárias de sexo (como ter ou não seios ou a quantidade de pêlos no corpo, para citar apenas dois exemplos). Ao contrário do que aprendemos na escola, nenhuma dessas categorias é binária; ou seja, há mais de duas opções em cada uma delas. Além disso, há mais de uma forma de essas diferentes características se combinarem. Para dar apenas um exemplo, existem pessoas que têm cromossomas XY mas que são insensíveis à testosterona e, por isso, desenvolvem fenótipos do sexo feminino. Elas são, assim, intersex, um termo que descreve todas as pessoas que não se enquadram na definição de sexo masculino ou feminino. Existem muitas formas de se ser intersex e pessoas intersex são de todos os gêneros possíveis (mas falaremos mais sobre identidade de gênero mais tarde). O que acontece com a espécie humana é que o sexo biológico existe num contínuo. A maioria das pessoas está em uma das duas pontas (sexo feminino ou masculino), mas existem inúmeras possibilidades no meio. Mais importante: essas possibilidades não são erros ou problemas de desenvolvimentos. Elas são parte da diversidade natural humana*.

Reconhecer essa diversidade é importante por vários motivos. Isso nos permite refutar a ideia de que humanos naturalmente se dividem em dois grupos e que, portanto, rejeitar esse binarismo é antinatural. Também é importante porque pessoas intersex são alvo de discriminação, além de frequentemente serem submetidas a intervenções médicas desnecessárias que visam a adequar seus corpos ao que se considera “normal”. Educar pais, médicos e a sociedade em geral sobre o que significa ser intersex é passo fundamental na garantia dos direitos dessas pessoas.

Mesmo com toda essa diversidade, seria possível argumentar que aquelas pessoas que se encontram nas pontas do contínuo (e que, afinal, são a maioria dos humanos) são essencialmente diferentes devido à diferença de sexo. Hoje em dia, com o desenvolvimento da neurociência, esse argumento geralmente se baseia na ideia de que os cérebros de homens e mulheres são fundamentalmente diferentes. Já dá para saber que o que vem agora é um “não é bem assim”.

Em primeiro lugar, a forma como o conhecimento produzido pela neurociência é veiculado pela mídia deixa a desejar (para dizer o mínimo). Vaughan Bell aponta um problema sério na forma como entendemos os estudos sobre o cérebro:

Imagens extremamente coloridas de cérebros são favoritas da mídia porque são simultaneamente atraentes e aparentemente fáceis de se compreender, mas, na realidade, elas representam algumas das informações científicas mais complexas que temos. Elas não são mapas de atividade, mas mapas do resultado de comparações estatísticas complexas de fluxos sanguíneos que se relacionam de forma desigual ao funcionamento real do cérebro. Isso é um problema de que os cientistas estão perfeitamente cientes mas que com frequência é deixado de lado quando os resultados chegam à imprensa.

Brightly coloured brain scans are a media favourite as they are both attractive to the eye and apparently easy to understand but in reality they represent some of the most complex scientific information we have. They are not maps of activity but maps of the outcome of complex statistical comparisons of blood flow that unevenly relate to actual brain function. This is a problem that scientists are painfully aware of but it is often glossed over when the results get into the press.

Mesmo antes das distorções introduzidas pela mídia, os estudos que supostamente indicariam diferenças nos cérebros de pessoas do sexo masculino e feminino já sofrem de limitações sérias. Em primeiro lugar, e como o próprio Bell reconhece, querer usar um estudo desse tipo como prova biológica da existência de uma diferença é um argumento circular porque os estudos de neurociência “tipicamente comparam grupos baseados em diferenças identificáveis e depois buscam saber como isso se reflete no cérebro” (“typically compare groups based on identifiable differences and then look for how this is reflected in the brain.”). Ou seja, estudos desse tipo que comparam homens e mulheres partem do princípio de que há uma diferença entre os dois grupos e depois buscam demonstrá-la no cérebro. É claro que um estudo com esse desenho já está enviesado para encontrar diferenças e o argumento, como diz Bell, torna-se circular.

Em segundo lugar, mesmo quando alguma diferença é identificável, ela é tênue. Neste vídeo (com legendas em inglês), a professora Daphna Joel explica que algumas características do cérebro são diferentes entre pessoas do sexo feminino e masculino, mas que essas diferenças se invertem em resposta a diferentes estíumlos. Longe de um todo masculino ou feminino, ela conclui, o cérebro de cada pessoa é um mosaico único de características femininas e masculinas. Já Cordelia Fine, autora do livro “Delusions of gender”, mostra como as diferenças identificadas em estudos de neurociência entre homens e mulheres em relação a habilidades específicas (como localização no espaço ou empatia) são mínimas. Fine também ressalta que esses estudos raramente dão conta de discutir a plasticidade do cérebro. Dizer que o cérebro é plástico significa que seu desenvolvimento responde aos estímulos que ele recebe. Considerando-se a forma diferente como meninos e meninas são tratados em nossa sociedade, não é possível olhar para as (mínimas) diferenças que existem e concluir que elas são, necessariamente, reflexo de diferenças biológicas, sem descrever seu desenvolvimento.

O resumo disso tudo, para quem tem preguiça de ler: o sexo biológico é uma articulação – que pode se dar de diferentes formas – de várias características, nenhuma das quais é binária. Os seres humanos existem num contínuo em termos do sexo biológico, com a maioria das pessoas ocupando as pontas (sexo feminino ou masculino) e uma diversidade imensa no meio. Essa diversidade é parte natural da nossa espécie. Mesmo em relação os grupos que estão nas pontas, não é possível afirmar que existam diferenças necessárias e biológicas com base numa ideia de que o cérebro masculino é diferente do feminino.

Continua na parte 2 e na parte 3!

*A quem se interessar mais, recomendo também este post, que descreve um estudo sobre o switch que controla a expressão do cromossoma Y e que conclui que fetos masculinos “se denvolvem perto da fronteira da ambiguidade sexual” (“human males actually develop near the edge of sexual ambiguity”)

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Introdução ao gênero: apresentação

Lendo este blog, fica claro que gênero é um tema que me interessa. Já escrevi sobre várias questões ligadas a gênero ao longo dos últimos anos, mas nunca cumpri a promessa de escrever um texto introdutório sobre o tema, em parte por falta de tempo, em grande medida por saber que não conseguiria dar conta de algo tão amplo e complexo. Resolvi pôr um fim à procrastinação e dizer logo o que posso. Em tempos de avanços de grupos conservadores, me parece importante ter algo, ainda que imperfeito, para combater visões machistas e preconceituosas.

Deixo claro o que esta introdução não é: não é uma discussão acadêmica do conceito de gênero, nem pretende ser uma apresentação exaustiva do tema. Não teria capacidade de fazer a primeira bem e a segunda é impossível. O que esta introdução pretende ser é apenas um primeiro contato com as discussões de gênero para quem ainda não parou para pensar muito sobre o assunto ou ainda está operando com uma visão tradicional da questão.

É justamente essa visão que será nosso ponto de partida. O senso comum sobre os seres humanos é que se dividem em dois grupos biologicamente distintos de acordo com o sexo. Ser do sexo masculino tornaria alguém, naturalmente, homem; ser do sexo feminino tornaria alguém, naturalmente, mulher. Mulheres e homens seriam diferentes por natureza e teriam comportamentos e sentimentos distintos. Por fim, a natureza humana também levaria à atração heterossexual. O sexo produziria gênero, que produziria a (hetero)sexualidade. Essa visão é defendida e sustentada tanto com apelos à natureza quanto com apelos à religião. Muitas pessoas pensam não só que essa é a realidade dos seres humanos, mas também que o é porque deus nos fez assim. Vejamos por que essa visão está completamente errada*.

Parte 1: sexo

Parte 2: gênero

Parte 3: orientação sexual

*Acho que a esta altura já está claro que sou ateia e que discordo de qualquer explicação que envolva (qualquer) deus. Contudo, não tenho o menor interesse em entrar numa discussão de religião aqui. Quando digo que o senso comum está errado é porque o gênero não funciona assim na prática. Independentemente de que papel você atribua a (algum) deus na vida humana, ele não pode ter criado algo que não existe.

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A definição de pessoa

O que é uma pessoa? Se a resposta parece simples, você ainda não parou para pensar no assunto. Vamos deixar de lado definições legais e nos concentrar apenas na ideia de que existe uma categoria de ser vivo que é distinta de todos os outros seres vivos do planeta. Os seres pertencentes a essa categoria, por pertencerem a essa categoria, têm direito a certas garantias (ao menos em teoria): não podem ser mortos*; não podem ser propriedade; não podem ser mantidos em cativeiro; e por aí em diante. O que, então, define essa categoria? Aviso logo: não pretendo avançar qualquer definição aqui, apenas apontar os motivos pelos quais me parece necessário ter essa discussão.

Uma compreensão rasteira simplesmente equipararia ser humano a pessoa, mas rapidamente vemos que essa definição não é suficiente se pensarmos, por exemplo, em casos de morte cerebral. Nesses casos, temos um ser humano ainda vivo, mas que já não é mais considerado uma pessoa, a ponto de seus órgãos poderem ser doados. Por outro lado, há a questão dos outros animais. Por que apenas seres humanos podem ser considerados pessoas?

É muito fácil perceber que há uma diferença entre a espécie humana e as demais espécies com que dividimos o planeta. O que não é tão fácil é explicar a que atribuir essa diferença. Vou deixar de lado discussões religiosas tanto por ser ateia, quanto por não conhecê-las a fundo, quanto pelo fato de que a definição de pessoa deve ser a mais universal possível e nenhuma definição baseada em preceitos religiosos o é. Vamos olhar para o conhecimento científico que temos a nosso dispor.

Carl Sagan afirma, em seu livro “The pale blue dot”, que a ciência progressivamente desmentiu a percepção de que somos especiais. Ao mostrar que a Terra é um planeta nada excepcional, orbitando uma estrela nada excepcional**, em apenas uma de bilhões de galáxias, a ciência desfez a noção de que habitávamos um universo feito exclusivamente para nós. Sagan estava se referindo à astronomia, seu campo de estudo, mas a ideia se aplica a outras áreas do conhecimento. Charles Darwin deu um passo decisivo nesse sentido ao demonstrar que os seres humanos, longe de uma criação única e especial de Deus, eram fruto do mesmo processo biológico que gerou todas as outras espécies do planeta, compartilhando com elas um mesmo ancestral e, portanto, sendo parente de todas. Muitos anos depois, com o mapeamento do genoma humano, aprendemos também que não só temos menos genes do que esperávamos, como temos menos genes do que uma banana. Dos genes que temos, 99% são iguais aos de chimpanzés e bonobos. Claramente não é aí que se encontra a resposta.

Outras pesquisas trataram de desfazer outras ideias de singularidade. Jane Goodall demonstrou que chimpanzés usam ferramentas, algo que se pensava ser exclusivo a seres humanos***. Desde então, diversas outras espécies foram observadas usando ferramentas. A capacidade de comunicar-se, inteligência e emoções tampouco são atributos exclusivamente humanos. Quanto mais avança a compreensão que temos de outras espécies, mais difícil é manter a convicção de que seres humanos são radicalmente diferentes dos outros animais. O que parece haver é uma diferença de grau, mas não de natureza, especialmente em relação a nossos parentes mais próximos.

Se nem todos os seres humanos podem ser considerados pessoas e se não há uma diferença tão radical entre seres humanos e outros animais, torna-se necessário pensar em definições diferentes de pessoa. Existem grupos que defendem justamente que grandes macacos, cetáceos e até certos pássaros sejam considerados pessoas devido às suas capacidades cognitivas, psicológicas e emocionais. Recentemente, uma juíza americana concedeu o status de pessoas legais a dois chimpanzés usados em pesquisa laboratorial. O advogado que pede a libertação dos dois chimpanzés argumenta que eles são “suficientemente inteligentes, emocionalmente complexos e cientes de si para merecer alguns direitos humanos básicos” (“intelligent, emotionally complex and self-aware enough to merit some basic human rights”).

A discussão é importante por mais um motivo. Infelizmente, a questão de quem deve ser considerado uma pessoa é frequentemente apropriada por grupos anti-escolha para avançar sua agenda. Para esses grupos, a definição de pessoa é qualquer coisa que possibilite as maiores restrições possíveis à realização do aborto. Evidentemente, isso não é uma definição satisfatória. Isso não significa, contudo, que a questão do aborto não seja relevante aqui. O único critério que permite classificar um embrião ou um feto de até pelo menos 20 semanas como “pessoa” é o fato de pertencer à espécie humana****. Se as categorias “humano” e “pessoa” não forem mais idênticas, isso implica consequências claras para o direito ao aborto.

Por outro lado, há um risco sério de se criar uma definição que negue a certos humanos o status de pessoa. Não faltam exemplos na história humana de atrocidades cometidas contra grupos considerados algo menos do que pessoas por seus algozes. No artigo citado acima sobre a possibilidade de se classificar animais não humanos como pessoas, o argumento contrário mais forte é justamente o que aponta que uma definição ampla o suficiente para incluir todos os seres humanos também incluiria um número excessivamente grande de outros animais – e uma definição suficientemente estreita para excluir a maioria dos outros animais acabaria deixando de lado alguns humanos, por exemplo por serem muito novos.

Sei que é extremamente insatisfatório terminar um texto de forma tão pouco esclarecedora. Infelizmente, é um tema complexo, para o qual não há respostas simples. Certamente, não pretendo fingir ter uma resposta à questão. Posso apenas dizer que acredito sim que precisamos repensar (ou talvez pensar) o que significa ser uma pessoa e que simpatizo com a ideia de conferir esse status a membros de algumas outras espécies.

*Se partirmos para definições legais, é claro que há exceções.
** “Far out in the uncharted backwaters of the unfashionable end of the western spiral arm of the Galaxy”, segundo Douglas Adams
***A quem se interessar pelo assunto, recomendo fortemente o livro “Primates: the fearless science of Jane Goodall, Dian Fossey and Biruté Galdikas”, de Jim Ottaviani e Maris Wicks, que apresenta de forma extremamente didática (e divertida) os estudos feitos pelas três pesquisadoras com grandes macacos e suas contribuições para o campo científico e para esforços de conservação.
**** Luc Boltanski argumentaria que o que define um embrião ou feto como pessoa é o fato de estar inserido numa rede de relações simbólicas. Obviamente, esse argumento não satisfaria grupos anti-escolha pois o próprio fato de optar por um aborto torna o feto uma não-pessoa (dado que nega a esse feto sua construção simbólica) e justifica a interrupção da gravidez.

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